Mente Dispersa

Fragmentos de ideias. Paixões.
Curiosidades ou banalidades. Sem pretensões.


domingo, outubro 23, 2005

A cidade tirou-me o sono mas deu-me a vida.

O meu primeiro dia de férias, a minha primeira noite de boémia. Passou algum tempo desde a última vez que me deixei perder na corrente da noite. Os dias sucederam-se uns atrás dos outros na rotina de sempre, com os mesmos problemas e as caras conhecidas por quem não morro de amores. Senti a necessidade urgente de me soltar desse atoleiro e voltar a respirar, e que melhor forma para isso acontecer do que atravessar as minhas fronteiras, passar dos meus limites. Um aniversário serviu como desculpa para começar uma noite como aquelas que experimentava anos atrás. Tomei um banho, fiz a barba e vesti umas roupas casuais. Não me interessava o meu aspecto, não ia sair para caçar, pelo contrário, sempre me servi da noite para saborear uma agradável solidão. O jantar de aniversário foi como todos os outros, boa disposição e conversas sobre temas banais. Eram vários os casais sentados na mesa, algo cada vez mais frequente pois o tempo não pára, e os velhos amigos da adolescência tornam-se os adultos com a vida já planeada. Apenas outro era como eu. Completamente solteiro. Mas bom, isso nunca me impediu de me divertir nas saídas, se necessário, sozinho faço a festa, sozinho termino a festa. E o jantar terminou, mas a festa mal começara. Juntos, todos fomos para Matosinhos. Alguém tivera a brilhante ideia de ouvir um som exótico. Tuareg. Os homens de azul, berberes nómadas das areias quentes do deserto do Sarah, serviram de inspiração para este café-bar, um espaço acolhedor, digno de um conto das 1001 noites. Mas alguém mais atento verificaria a miscelânea de influências estranhas à cultura marroquina, tal como um Buda virado de costas cumprimentando-nos à nossa chegada. Encostada a um canto, uma enorme tenda tradicional dos povos berberes convida-nos a sentar sobre os tapetes e as almofadas de motivos árabes. Os casais amigos juntam-se à volta de uma mesa típica, e eu aproveito para me recostar, um pouco afastado, sobre algumas almofadas. O ambiente começava a ser bom demais para se desperdiçar com conversa. O som da flauta e do alaúde na atmosfera combina perfeitamente com a volúpia carnal de uma dançarina de longos cabelos, que tal e qual uma bela Sherazade transpirava erotismo através das tradicionais danças do ventre. Acompanhado de um chá de menta e hortelã servido à maneira árabe, e partilhando uma cachimbada de narguilla(*) com alguns do meus amigos, deixo-me envolver pelo que me rodeia. A tensão acumulada lentamente dá lugar a uma calma, o tempo avança cada vez mais devagar, os problemas esbatem-se da minha memória, desligo-me dos diálogos dos meus companheiros. Observo as pessoas em volta, procuro cruzar o meu olhar com os de outras pessoas apenas por curiosidade. Por breves momentos deixo-me hipnotizar pelos olhos absorventes da dançarina. Os movimentos exóticos de um corpo bonito despertam desejo, mas são os olhos que cativam, que fazem com que duas consciências se toquem, mesmo que só por breves segundos. A minha atenção vira-se para o cachimbo de água e para o fumo branco que exalo dos meus pulmões. Senti-me como se estivesse em casa, com alma de árabe, imaginando alguma cena num passado árabe de Portugal, estranhamente esquecido dos anais da história. Acordo dessa letargia quando um amigo, com ar de maroto, me diz: “Anda lá, tira-me esse sorriso da boca (…) vamos indo!”. Lanço um último olhar ao lugar, e um suspiro por aquilo ser apenas uma fantasia distante, algures num deserto…

A noite fria desperta-me os sentidos. Estou longe de querer acabar com a noite. Lentamente os casais, um a um, foram-se embora. Os últimos beijinhos de despedida e sobraram apenas os solteiros. Eu e outro meu amigo. Para nós, faltava apenas um pequeno ritual para terminarmos em beleza. Uns traçadinhos (**) na Ribeira. E ao som da banda sonora de Ocean’s Eleven, assim fomos de carro pelas ruas vazias do Porto em direcção à parte antiga da cidade, com os seus bares à beira-rio. Já a pé descemos pelas ruelas, por entre bairros de aspecto medieval e renascentista, até que entramos numa tasca de ar pitoresco tal como o dono, típico morador da Ribeira, baixinho de bigode e sotaque inconfundível, acompanhado da mulher de meia-idade sentada num banquinho. De um só gole deitei abaixo o licor, e logo um calor subiu até à minha cabeça! Continuamos o nosso caminho e desembocamos numa praça com uma vista formidável para o outro lado do rio, de onde se perfilam as grandes caves do Vinho do Porto, onde letras iluminadas formam as palavras Sandeman e Cálem. As luzes da outra margem reflectem-se na calmaria do rio que segue o seu caminho lento mas firme para a Foz ali perto. Mais a montante, umas luzes tímidas deixam adivinhar uma enorme estrutura de ferro que liga as margens, uma ponte do final do século 19, construída por um sócio de Eiffel. Um cenário de paz e de sonho. Por isso que nunca estranho as almas que se deixam vaguear por este lugar de galerias, túneis e ruelas, mesmo quando o rebuliço dos bares já há muito que terminou. Figuras góticas apreciadoras da noite, corações partidos chorando à beira-rio, turistas sem se importarem onde irão dormir, apreciadores das qualidades do deus Baco (tão amigo dos vinhos Portugueses), e outros solitários de todos os géneros fecham a noite. E a minha estava quase acabando. De regresso ao carro que o meu amigo dá-me boleia; nem sequer falamos muito, não havia razão para isso. Deixei-me levar pelo ritmo do CD que tocava no auto rádio, observando a minha cidade enfeitada pelas luzes dos candeeiros, cidade onde nasci e cresci ao longo dos anos tal como ela própria, uma cidade que cresceu camada a camada, uma cidade medieval, quinhentista, oitocentista, contemporânea, um cenário perfeito para alguém que ama a vida para além daquilo que é familiar. Um “punk” encontrará o seu lugar, um “beatnik” também, tal como os amantes da banda desenhada e do cinema fantástico. Regresso a casa. Agora sou iluminado pelo brilho reluzente de um ecrã. Os meus sentidos continuam despertos, a cidade tirou-me o sono mas deu-me a vida.

(*) narguilla: um cachimbo árabe de água, com fumo de sabores variados como menta ou eucalipto.
(**) traçadinhos/traçados: licor

9 Comments:

Blogger Wakewinha said...

Acredites ou não, vi-me figurante na tua cidade. As tuas palavras foram realmente envolventes...

Assim como foram muito simpáticas, a do teu comentário aquando da tua visita ao Voz Oblíqua!

Beijinho e boa semana*

2:53 da manhã  
Blogger Filipe Veiga said...

Esta cidade é um lindo cenário, não é? Vontade de nos perder por lá...

Bjs

6:27 da tarde  
Blogger Ann said...

Lindo post, Filipe. Excelente descrição.

6:59 da tarde  
Blogger Filipe Veiga said...

Obrigado! :)

10:10 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Oi Filipe... pelo post já deu para perceber que estas férias vão lhe cair muito bem :) É isso aí... aproveita desse lado do oceano enquanto eu aproveito deste outro lado. Quem sabe no próximo ano eu não possa aproveitar aí também?!?!? :P

Bjos

11:50 da tarde  
Blogger Filipe Veiga said...

Oi Angel.. vou aproveitar o máximo com certeza. Mas.. façamos uma troca: você vem visitar e sentir o frio desta latitude, e eu regressarei ao Brasil, pois acho que larguei uns pedacinhos do meu coração algures pelo Rio e arredores (um deles tenho a certeza que foi em Arraial do Cabo aiaiai... :)
Bjs

1:24 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Ok Filipe digamos que aceito parcialmente a troca. Uma parte do meu coração está aí em Portugal, ali por Aveiro :) Quanto ao frio, bem prefiro o calor dos dias de verão. :)

Bjos

P.s - uma pessoa que você conhece sabe como me encontrar.

3:53 da tarde  
Blogger Filipe Veiga said...

Ok Angel! :) Isso vai requerer algum trabalho de detective da minha parte! :)

4:26 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Estou usando seu espaço para comentários como chat hahaha
Quer dicas? Bem uhmmm seu amigo mora no Porto óóóó hahahaha. Outra? O nome dele é composto. Qualquer dúvida: email me

Bjos

10:59 da tarde  

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