Um sonho...
Caminho lentamente e sem rumo, pelas ruínas de uma cidade abandonada ao caos e ao breu de uma noite interminável. Passo por ruas e avenidas recortadas por destroços de edifícios destruídos, por entre os quais se movem assustadas, sombras de criaturas miseráveis do que antes seriam humanos. Parecem ser o que resta dos sobreviventes do holocausto que atingira aquela metrópole. Não consigo recordar-me como e porque cheguei àquele degredo de destruição. Sei apenas que tenho de continuar a caminhar por entre este fim do mundo. Que forças terríveis teriam levado a noite descer sobre a cidade trazendo a morte e a infelicidade? O quão impotente se sentiu a população que habitava a cidade? O quão miserável é a vida dos sobreviventes? Não sei. Não quero saber. Tenho de encontrar a saída deste cenário dantesco, antes que a maldade que destruiu aquele lugar volte para terminar o sofrimento daquela gente.
Subo por uma avenida, sentindo que os meus passos são um pouco mais compridos do que seria habitual, como se um sentimento de pânico me invadisse o corpo com uma energia sobre-humana. Sinto que o medo começa também a espalhar-se pelos sobreviventes, os quais começam a erguer-se para uma postura mais humana, como se a vergonha e o desejo de ficarem ocultos fosse ultrapassado pelo instinto de sobrevivência. E com razão! Olho para trás, para lá da linha do horizonte como se a minha vista alcançasse distâncias impossíveis. Vejo uma nuvem prateada a aproximar-se e ouço um ruído agudo, composto por silvos de um animal selvagem. A nuvem parece preencher todo o horizonte à medida que se aproxima da cidade. Petrificado de medo, consigo vislumbrar as criaturas prateadas que preenchem o espaço da nuvem. Essa horda voadora alcança a cidade contornando os obstáculos, prédios e monumentos mais altos, e acaba por alcançar os mais retardatários dos que fugiam.
No momento em que as criaturas aladas descem para as ruas apanhando as suas vítimas, vejo com nitidez os horrores que nos perseguem! Criaturas prateadas e magras, com asas repletas de penas afiadas como lâminas, com um corpo de mulher, retorcido e ressequido, e longos cabelos brancos que caem sobre uma cara esbranquiçada e cadavérica, com olhos tão escuros como a noite que nos rodeia. E apesar do aspecto velho e mortiço, parecem deliciar-se genuinamente como crianças, com a vida que retiram das pobres vitimas que se deixam apanhar. Tenho de fugir! Elas aproximam-se! Viro-me de volta na direcção que tomara antes, e corro, corro mais do que o meu fôlego me permite. Dou passadas largas, suficientes para atravessar ruas em poucos segundos, apercebo-me que sou capaz de saltar obstáculos tão elevados quanto o de pequenas casas, ganho uma velocidade e ultrapasso todos os miseráveis que fogem, deixando-os para trás para o seu fim certo.
Mas a cidade não termina, não há maneira de chegar aos seus limites, edifícios e mais edifícios, ruas e praças, por mais que me esforce não parece que consiga aumentar a distancia da horda que me persegue atrás. O peso das minhas pernas aumenta por cada passada larga, por cada salto que dou. Quem sabe se me esforçar consiga-me elevar por cima daquele labirinto de prédios e monumentos. Num ultimo esforço deixo-me levar pela inércia do meu ultimo salto voando sobre os telhados daquela cidade miserável, e ao longe para lá dos limites da cidade, vejo um mar cuja linha do horizonte parece deixar escapar os últimos vestígios de um pôr do sol… LUZ! De repente sinto um calor a invadir os meus sentidos e todas as forças que tenho são reunidas num último salto! Desço para me preparar para esse momento e… o chão sobre os meus pés cede com a força que tento fazer para me impulsionar nos ares, resultando numa trajectória inclinada e demasiado baixa, acabando por me fazer colidir contra um edifício ali perto.
Desastre. Não consigo perceber se estou magoado. Não importa pois a horda aproxima-se rapidamente. Vejo ao meu redor as pessoas a fugirem por entre os escombros e as malditas hárpias a gritarem aquela cacofonia de sons estridentes. Por uns instantes sinto que a minha resignação parece ter resultado na indiferença das criaturas, mais preocupadas em perseguirem aquelas vitimas que ainda correm, deixando para trás os moribundos feridos pelas quedas que as Hárpias, malevolamente provocavam quando capturavam alguém. Então o meu corpo parece retornar à vida, e uma dor intensa enche-me os pulmões fazendo-me gritar de forma lancinante. De súbito, as criaturas aladas ao redor, param, e viram-se todas na minha direcção. Fez-se um silêncio, como um prenúncio de algo muito desagradável prestes a acontecer.
É então que elas soltam enormes gargalhadas de pura maldade, e as suas caras parecem brilhar por terem finalmente encontrado aquilo que queriam: “Apanhamos-te! Estávamos enganadas quando chegamos pela primeira vez a esta cidade nojenta, mas sabíamos que acabarias por passar por aqui! Estás perdido, desgraçado!”. Não entendo. O que pretendem elas de mim? Quem sou eu para que toda aquela maldade me persiga, destruindo tudo e todos somente para me matarem? Tudo isto como se fosse um pesadelo. Um sonho horrível. Um sonho… O meu sonho! Os meus demónios! Os meus receios! E se é um sonho então não tenho que ter medo. Nem sentir dor. E erguer-me do chão pois não tenho nada magoado. E virar-me para aquelas criaturas infernais permanecendo calmo. “Julgas que nos podes desafiar? És um tolo se acreditares nisso!” gritam as mulheres, enfurecidas!
Sorrio. As hárpias gritam de raiva e, de forma desenfreada, sobem pelos ares, para desferirem um golpe na minha direcção. Fecho os olhos e sinto tudo à minha volta a esbater-se, o sonho a terminar. O silêncio rodeia-me. Certamente a conclusão do meu sonho. A paz e a satisfação de finalmente poder continuar o meu sono, é só deixar apagar os últimos traços visíveis daquela cidade e das suas criaturas.
“Solta o teu demónio!” uma voz quebra o silencio deixando-me em suspenso na imagem esbatida do meu sonho. “Enfrenta os teus medos! Solta o teu demónio!” insiste a voz. “SOLTA O TEU DEMÓNIO, COBARDE!” grita a voz, deixando-me aterrado e ao mesmo tempo espantado! As imagens do sonho regressam mais nítidas do que nunca, com as hárpias prestes a desferir o ataque e eu de pé, enfrentando-as. Mas já não estou mais calmo, pois sinto um calor a crescer dentro de mim, remexendo as minhas entranhas, ao mesmo tempo que o profundo do meu ser é inundado por um vermelho de raiva. Como se toda a fúria do caos que antecedeu a criação do Universo estivesse contida num pensamento e se materializasse na carne do meu corpo, distorcendo-o, fazendo os meus olhos tornarem-se vermelhos de sangue, a minha face assumindo uma imagem grotesca, e a minha massa muscular crescendo de forma descontrolada. Sinto-me a crescer, a transformar-me num monstro em tamanho e agressividade, de uma fúria contida mas cada vez mais descontrolada.
E nesse momento, em que parece que não tenho mais forças para aguentar o acumular da raiva, na pouca racionalidade que me resta, vislumbro a cara de pânico e de profundo terror nas faces encarquilhadas das hárpias! O Mal vislumbrara o Caos. E agora fugia! “Não as deixes escapar. Solta toda a tua força. AGORA!” – a voz regressa com uma última ordem. Ouço um som de trovão, e sem qualquer hesitação, largo toda a minha fúria, para além de todas as concepções de ordem e caos, de bem e mal, sentindo apenas toda a energia a fluir numa enorme explosão de luz. E tudo é devastado. A cidade e os seus edifícios, os feridos, os moribundos e os restantes sobreviventes, e as hárpias, até mesmo aquelas que se aperceberam desde cedo o que iria acontecer e tentaram fugir.
Tudo acabado. Silêncio. Não tenho a noção do tempo. Acordo numa superfície negra, lisa e espelhada. Toco no chão e olho em redor, a superfície estende-se por kms até ao longe onde termina numa praia de areia de vidro. A praia! Mas a cidade..? Teria a força da explosão alisado o chão da cidade? Não tive tempo de pensar. Estava esgotado quando reparo ao longe numa sombra que se aproxima. E não passava disso, de uma sombra, de uma figura com forma de homem, mas com a consistência e a cor do chão, um homem todo ele negro, sem face, sem cabelo, sem nada que o fizesse identificar como humano, para além da sua forma. Apesar disso, a figura faz-se entender por uma voz etérea, sem uma origem que se pudesse identificar. “Admirado? Isto que fizeste é apenas uma fracção do que podes alcançar. Os teus medos são como areia ao vento. Tu és o furacão. E no entanto, continuas admirado, o que é uma pena.” – afirma o homem para mim. “Como podia eu ter feito isto? Afinal acabei por destruir toda a cidade!” – respondi. “Falas daqueles miseráveis que mataste? Eles já se encontravam mortos pelos teus medos. Fazem parte da história, do teu passado”
-“Mas quem és tu afinal? O que és tu? Porque fizeste isto tudo?” – gritei enfurecido pelo escárnio que senti daquela figura negra. “Eu sou a ambição. A tua ambição. Negra como a escuridão para onde tu me atiraste.” – sorriu a figura, ou pelo menos, parecia pelos trejeitos das feições quase indistintas da cara plana. “Mas não fui eu que te empurrei para o holocausto desta cidade. Foi a tua raiva, a tua frustração, o demónio que fizeste crescer dentro de ti. Eu apenas sugeri que abrisses os portões que continham toda a tua força. Coisa que a tua fraca confiança parecia incapaz de fazer. Sabes, é que eu também sou o egoísmo e o ego, e não poderia deixar que aquelas bestas, aqueles medos te transformassem num cobarde resignado.”
-“Mas tudo, tudo foi destruído! É a minha ambição? Para este caminho que o egoísmo me leva? Para uma solidão no meio deste lugar desolador” perguntei.
- “Idiota! A maldade não se reflecte somente na ambição e no egoísmo! O altruísmo pode estar contaminado pela vaidade! Enfim, quantas qualidades humanas que num ápice se tornam em perversões! Pouco me importa isso! O que me interessa é que eu consegui aquilo que pretendia! Assisti ao que a tua força pode concretizar! Descobri que afinal podes derrotar os teus medos, e atingir aquilo que pretendes! Deixar-te-ei sozinho a remoer esse demónio que soltaste, mas estarei por perto a observar-te. Não vou deixar que me atires novamente para o fundo do poço, pois não voltarei a erguer-te.” – exclama a figura. “Pouco importa a solidão que sintas, só tu podes recuperar a confiança do teu ego. Mais ninguém! Agora vai-te! Já fiz demasiado por ti… Vai-te…” – ordena a Ambição, pouco antes de o sonho se esbater até à escuridão completa do vazio do sono.
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